quinta-feira, 31 de março de 2011

Do navio à senzala


Vou contar-lhes uma história
De um amor poliango
De um sonho trazido
No fundo de um navio
Onde um amor surgiu
Em meio a dores e chibatas

Amor correspondido
De um negrinho franzino
Pela negra donzela rainha
De uma província vizinha
De onde foram arrancados

E a negrinha também gostou
Do negrinho franzininho
A quem apelidou de engraçadinho
Por ser o mais feio do navio

Desembarcados em outra terra
Marcados como bois importados
Trazia o negrinho no peito
Uma alegria e um ardor
Por ser aquele amor
Tão correspondido no barco

E separados tão logo
Foram levados a longínquos lares
De gente desconhecida
E de santos em altares

O negrinho pra senzala foi levado
E como um potro recém domado
Foi tirado de seus direitos
De liberdade e opiniões

E apanhava sem porque saber
Como um corcel indomado
Porém o negrinho ressabiado
Sabia o que fazer
Mesmo assim sem opções ter
Apanhava noite e dia

Mas a dor nem castigava
Pois nos olhos ele levava
A imagem meiga da sua rainha
Que tão breve encontrara
E tão breve perderia



E apanhava o negrinho no troco
Quando sem saber por quê
Foi chamado a casa grande
Para buscar tão distante
A filha do seu sinhô

Recebeu uma só regra para cumprir
Não olhar nem sequer sorrir
Para a filha do sinhô
Ou para a escava que vinha junto
Para a “pobre” sinhazinha
Sozinha não viajar

Foi pela estrada
Sozinho a pensar
 -Que diacho vou falar
Se nem conheço a tal escrava
Nem sequer essa sinhá desgraçada
Que me fez sair da senzala

E assim seguiu caminho
Sempre lembrando a regra
De nem sequer a cabeça erguer
Nem um lábio mexer
Para a tal sinhá e sua escrava

Quão grande surpresa teria
Ao ver que acompanhava a donzela sinhá
Sua escrava rainha
E nem um breve sorriso
Ou um pequeno esboço tímido
Poderia ele soltar

Levou as duas pra fazenda
Alegre e temeroso
Que faço eu- pensou sozinho-
Se tão perto da minha amada
Nem ao menos posso tocá-la

E a negrinha sorriu
Quando o negro franzino
De nervos e risos finos
Mal cabia em alegria
Por seu amor reencontrar

A negrinha foi pra casa grande
E negro pra senzala voltou
E de noite apanhou
Por demorar pela estrada

Mas como seria rápido?
Mal se agüenta em si

E o negrinho apanhava
E pela janela da casa
A negrinha deixava
Uma lagrima rolar

Passou o tempo
E sempre lá estava
A negrinha molhada
De uma triste lagrima
Na janela a rolar

Sequer uma palavra
Os dois trocavam
Apenas olhares marcados
Com a marca da escravidão

E com o tempo
O sinhô da casa grande
Virou os olhos pra negrinha
Com pensamentos obscenos
Levou a negrinha pra cama

Foi a primeira vez da mucama
Que guardava na magia de um sonho
O tal momento ao seu amor

Foi também do negrinho
A maior dor
Que pela primeira vez não veria
Sua amada rainha
Na janela a lhe mirar

Custou mas sorriu de novo
A ver na madruga clara
Sua negrinha machucada
E em lagrimas molhada
Por ser uma escrava
Que nada podia fazer

O negrinho em raiva
Jurou que ainda matava
Aquele maldito sinhô
Que do seu amor abusou
E o seu sonho massacrou



Mas a negrinha falava
Que de nada servira
Pois outro sinhô viria
E poderia ser pior

Mas o negrinho em raiva
Mal sequer ouvia e escrava
Que pela primeira vez lhe falara

E negrinha dizia
Deixa que assim ocorra
Meu coração é teu
Acaso queres que eu morra
Se matar o sinhô
Irás junto pra o caixão

A essas palavras
Com espanto o negrinho pensou
 -É maior a dor de amor
Do que a dor da chibata
Ao menos a chibata vai e volta
E essa dor que parece traição
Fica cravada no meu coração-.

Voltando a negrinha pra casa
Deixou o negrinho franzino
De apelido engraçadinho
Pensativo na senzala

Ainda com grande raiva
O negrinho se acalmou
E de leve um suspiro deixou
Em uma triste manhã
De uma noite mal dormida

Mas ainda com raiva
No amanhecer do dia
De sorte o negrinho se erguia
E atacava com uma ira
O senhor que noite antes
Abusava de sua menina

Mas o negrinho era franzino
E ainda por cima mal dormido
Foi dominado pelo sinhô

E esse ainda com mais raiva
Mandou o negro pra senzala
E nem pão nem água
Ao pobrezinho servia
Caindo uma noite escura
De rancor a amargura
Levaram o negrinho pro tronco

Pensou sozinho de novo
É menor a dor da chibata
Do que desse amor que me mata
Por dentro de tanto sofrer

Mas o negrinho era fraquinho
E apanhava noite e dia
E fraco nada conseguiria
Agüentar da ira do sinhô

E dessa vez foi mais forte
Cada laço de chibatada
E em gritos horríveis
Ficava o negrinho no troco
A chorar não por dor
A eram lagrimas de um amor
Tão forte e tão perdido

E a negrinha chorava
Chorava como criança
Eram lagrimas de sangue
Lagrimas de quando morre a esperança

E o negro no tronco continuava apanhando
Até que o sinhô maldito
Viu a negrinha na janela
E querendo seu corpo
Obrigou a negrinha a deitar

E foi ainda mais forte a dor do negro
Que de tanto apanhar
Foi os olhos fechando
E neles a imagem do amor
Com um maldito sinhô a beijando

E o negrinho foi caindo
Na poça do próprio sangue
E no coração sentindo
Uma dor irrelevante



E o negro morreu no tronco
E a negrinha mais triste ainda
De dor também morria
Na cama do maldito sinhô

                                   Nepomuceno Alves
                        Lavras do Sul, 16-março-2011